Adaptado dos estudos de Welber Silva e Rafael Baltresca
Tradicionalmente, teoria do processo de hipnose envolve analogias que incluem termos como o consciente, o subconsciente e a faculdade crítica. Mas, o que seriam essas metáforas na prática? Como se pode explicar e compreender o funcionamento da hipnose ou transe através de uma teoria científica? Estas duas perguntas representam os pontos centrais deste texto, que procurará demonstrar a hipnose de um novo ângulo.
O Processamento Preditivo
Até pouco tempo atrás se acreditava que o nosso cérebro fosse reativo – recebemos um estímulo e este estímulo faz com que o nosso cérebro reaja – mas o que se confirmou na última década é que o nosso cérebro, é na verdade, uma máquina preditiva. Peter Sterling em seu livro Principles of Neural Design demonstra que o nosso cérebro evoluiu com uma única e valiosa missão: gerenciar e economizar energia preventivamente, na medida em que permite o organismo a funcionar bem para os seus propósitos de desenvolvimento e a continuação da espécie. Uma engenharia incrível foi aplicada pela natureza, permitindo que nossos cérebros realizem proezas tremendas em milésimos de segundo, com um mínimo consumo de energia.
Para que isso fosse possível, nosso cérebro não podia ser reativo. Não poderia car inerte aguardando um estímulo para saber o que fazer em seguida. Em muitas situações que necessitam da performance do organismo, tal adaptação reativa nos levaria à morte! Então a natureza criou uma solução, dotando nosso cérebro com a capacidade de prever e simular eventos futuros probabilisticamente, sem depender de um processamento formal de estímuloresposta, que lhe consumiria uma grande quantidade de energia.
Quando digo eventos futuros, não estou tratando de algo como a previsão do tempo ou adivinhação, mas de algo que envolve as nossas necessidades metabólicas e eventos em tempo real que nos acontecem a cada segundo – os dados que recebemos através dos cinco sentidos, o resultado do funcionamento do corpo em um dado momento etc – para isso, o nosso cérebro procura antecipar-se no tempo, e desenvolver um conjunto de predições que acredita serem compatíveis com os dados que recebemos, tudo isso em milésimos de segundo e fora da nossa consciência.
Esta predição é um processo Top-Down (de Cima pra Baixo). O seu cérebro quando diante do rosto de alguém que você conhece, irá formar primariamente este rosto a partir de seus dados internos, da sua memória e experiências passadas. Assim, reunirá os dados internos e formará um esboço daquilo que está diante de você e simulará isso em seu córtex visual, dentre outras áreas, sem mesmo considerar os dados recebidos pelos olhos. Só depois disso, é que contará com os dados recebidos pelos olhos para comparar com o que previu e fazer as correções necessárias para ajustar a imagem, se o couber. Se a pessoa que você está olhando for alguém que você conhece, seu cérebro será capaz de formar a imagem dela com um mínimo de correção possível, trabalhando quase que na totalidade, com seus dados internos e predições.
Este fato nos leva a uma compreensão importante: todos nós estamos em transe e alucinamos o tempo todo, e não temos como ter certeza ou o contato concreto com a realidade. A realidade que pensamos conhecer, é tão somente uma representação e simulação interna daquilo que o nosso cérebro compreende como a realidade em um dado momento.
O Loop de Predição
Mas afinal, como funciona o processamento preditivo? E de que forma ele explica o funcionamento da hipnose?
Andy Clark, fiósofo e cientista cognitivo, em seu livro Surfing Uncertainty: Prediction, Action, and the Embodied Mind propõe que a percepção se trata de uma alucinação controlada, e que o nosso cérebro tenta adivinhar antecipadamente o que está se passando dentro e fora do organismo para se preparar e agir adequadamente diante disso.
Lisa Feldman, através da sua Teoria da Emoção Construída e seu livro How Emotions Are Made demonstra esse funcionamento de uma forma bem didática e simplificada, através do Loop de Predição.
Primeiro, o cérebro prediz o que poderiam ser os dados ou evento; Segundo, ele simula no organismo em tempo real as configurações neurofisiológicas dessa predição; Terceiro, ele compara o que previu com os dados recebidos do mundo interno e do próprio organismo; e Quarto, faz a correção necessária e inicia um novo loop, tudo isso em milésimos de segundo!
Por isso vivemos em transe e alucinamos o tempo todo. O processamento preditivo explica o motivo pelo qual escutamos alguém nos chamar ou o smartphone tocar quando na realidade não havia ninguém chamando e o smartphone não tocou. Demonstra o motivo pelo qual sentimos angústias ou medos pouco justificáveis diante de situações que não representam um risco real, como acontece em transtornos de ansiedade e humor. Por fim, explica como os fenômenos da hipnose funcionam, dentro do paradigma da ciência cognitiva.
A Faculdade Crítica no Processamento Preditivo
Se todos nós vivemos uma alucinação controlada e não temos contato concreto com a realidade, porque nem todo mundo alucina e tem vivências de transe quando hipnotizado?
A explicação para isso é muito simples. Lembra que o Loop de Predição é composto por quatro partes? Pois bem, as duas últimas duas partes são cruciais para que a hipnose de rua, palco ou clínica aconteça e seus fenômenos se efetivem.
Nosso cérebro sempre começa com uma predição e simulação, e então faz uma comparação destas com os dados que estiver recebendo, para depois fazer uma correção na predição, ou mesmo manter a sua predição original. Quando o seu cérebro faz um loop de predição ele tem algumas alternativas:
1. Fazer a comparação e escolher fazer uma correção, usando os dados recebidos externamente para aprimorar a predição.
2. Receber os dados, fazer a comparação e desprezar os dados externos, mantendo a predição e simulação originais.
3. Descartar a predição em detrimento aos dados externos concentrando-se na correção.
4. Desprezar os dados externos dos cinco sentidos e do organismo e executar literalmente as suas predições.
O objetivo quando induzimos alguém ao transe formal é facilitar ao máximo a segunda e a quarta opção. Para isso, usamos algo denominado nicho afetivo, que é determinado por aquilo que o cérebro ache importante em um dado momento. Enquanto você lê esse texto, esse é o seu nicho afetivo. Para facilitar um nicho afetivo, temos que atrair o cérebro com atenção, surpresa, risco ou curiosidade. Nosso objetivo é o de engajar o cérebro em um nicho de informação em específico, com predições fortes e congruência o suficiente para que ele possa se antecipar diante do que acontecerá a seguir. Por meio de simulações incorporadas extremamente ricas que retroalimentam o loop com muito mais predições semelhantes, levamos o cérebro a ficar confiante naquele nicho afetivo, em suas predições futuras e, ao desprezo de outros nichos de informação que poderiam ser usados para fazer comparações e correções. Isso é o que se denomina popularmente como o rebaixamento da faculdade crítica.
Façamos um experimento: olhe para um objeto na sua frente. O que acontece com o restante dos objetos no ambiente? Eles ficam embaçados, não ficam? E o objeto em que você se concentrou ficou bem nítido. Um efeito inverso ocorre quando você dirige a atenção para outro objeto especificamente. Esse é o nicho afetivo. Quando seu cérebro julga algo importante, passa a torná-lo mais nítido e iluminado para a sua consciência. Na hipnose, escolhemos o nicho de informação que deverá ocupar a atenção do cérebro da pessoa, enquanto as outras informações e dados, ficam cada vez mais embaçadas para a sua consciência e não atrapalhem como correção em relação às predições que queremos valorizar. São as predições que valorizamos que devem retroalimentar o loop de predição e servir de comparação para os eventos que ocorrerão na sequência da experiência do sujeito. É assim, com o cérebro contando cegamente em suas próprias predições, que se configura o que chamamos de transe profundo, estado sonambúlico, esdaile, etc.
Pense na atividade das mãos magnéticas, por exemplo. Quando você solicita a alguém para fazer a atividade, a pessoa imagina que há um ímã em cada mão, que se atraem um pelo outro. Ao ter a intenção de imaginar essa possibilidade, o cérebro começa a fazer inúmeros loops de predição, usando a experiência passada do sujeito com ímãs e também as sensações interoceptivas incorporadas para antecipar o fenômeno, com uma simulação neurofisiológica completa, como se o evento estivesse acontecendo de verdade. Se o sujeito estiver engajado, desenvolverá um nicho afetivo, sentirá sensações diferentes na palma das mãos e antes que tenha consciência ou intenção, seu cérebro fará um pequeno movimento muscular. Ao tomar consciência dessas sensações e movimentos, o sujeito reage às suas impressões e seu cérebro constrói outros loops, validando ainda mais a experiência das mãos se atraindo. Com o passar do tempo, a reação do sujeito às suas sensações e aos diversos loops, desenvolvem um realismo afetivo (transe), e então, o cérebro passa a ignorar os dados sensoriais reais -não tem nenhum ímã, e as mãos não se atraem por natureza- e começa a validar a alucinação sensório-motora-visual.
Resumindo, o cérebro não é uma simples máquina que reage diante dos estímulos do mundo externo. Ele é estruturado com bilhões de loops de predições que produzem uma atividade cerebral intrínseca. Predições Visuais, Auditivas, Olfatórias, Gustatórias, Somatossensoriais e Motoras, viajam através de todo o cérebro influenciando e se submetendo umas às outras. Essas predições são apoiadas sendo comparadas com os dados sensoriais do mundo externo, que seu cérebro pode priorizar ou ignorar.
A compreensão sobre o funcionamento do processamento preditivo do cérebro, pode facilitar muito a atividade do hipnotista ou hipnoterapeuta, seja em apresentações de hipnose de entretenimento, seja no entendimento da sintomatologia de um cliente na clínica, para facilitar e implementar mudanças mais eficazes.
A ciência cognitiva é uma área fascinante e crucial para se conhecer o funcionamento da mente humana e a hipnose. É também uma área que influenciará incrivelmente o nosso futuro como na próxima década. O modelo do processamento preditivo, por exemplo, é a fonte para o desenvolvimento e aprimoramento da inteligência artificial e diversas outras tecnologias que estão revolucionando o nosso cotidiano.
Adaptado dos textos de Welber Silva e Rafel baltresca e de estudos de Peter sterling, Andy Clark e Lisa Fieldman.